sábado, 19 de março de 2011

Biossistemas Integrados: transformando esgoto em energia, vida e beleza

Biossistemas Integrados: transformando esgoto em energia, vida e beleza
por Gui Castagna — última modificação Aug 03, 2009 09:51 AM
tags: Construção Civil
Versão completa matéria publicada na ùltima edição da Revista Gea, publicado
aqui por meio de uma parceria de troca de conteúdo.

Enquanto nossos míopes governantes celebram a descoberta de novas reservas
de petróleo no litoral, e multinacionais articulam lobbys bilionários para
aprovação do plantio de alimentos transgênicos e para construção de usinas
nucleares, uma onda de projetos verdadeiramente sustentáveis transformam
esgoto e “lixo”orgânico em energia, adubo e alimento. Nesse novo caminho
destaca-se O Instituto Ambiental (OIA), ONG sediada em Petrópolis (RJ) com
equipes na Bahia e em São Paulo.

O OIA atua na pesquisa, aplicação e difusão dos biossistemas integrados -
sistemas biológicos multifuncionais que realizam o tratamento de efluentes
de forma simples e ecológica, com baixo custo e baixo consumo de energia,
além de promover funções positivas durante o processo.

Nosso entrevistado acompanha o OIA desde sua fundação, em 1992, quando o OIA
participou de um projeto local de biossistemas, com a participação dos
laureados José Lutzenberger, o “Lutz”, do Professor George Chan, da Fundação
ZERI, um dos responsáveis pela interpretação moderna dos biossistemas, e do
Professor Michael Braumgarten, da Universidade de Hamburgo, Alemanha.
Filósofo por formação e educador comunitário por excelência, Valmir Fachini
falou à Revista Gea sobre seu trabalho e a importância dos biossistemas.

Revista GEA: O que são e como funcionam os biossistemas integrados? De que
forma eles podem colaborar na despoluição dos rios?

Fachini: Os biossistemas integrados são um conjunto de equipamentos
implantados que tentam imitar os ciclos sustentáveis da natureza e que
reproduzem os grandes reinos: animal, vegetal, mineral, e moneras1. Os
biossistemas fazem com que os resíduos dos processos humanos de produção
percam seu potencial poluidor ao longo das diferentes etapas de tratamento,
produzem energia a partir da biomassa disponível, e reciclam nutrientes para
reaproveitamento na produção de vegetais e na recuperação de áreas
degradadas.

Em geral os biossistemas aplicados ao tratamento de dejetos humanos iniciam
pela remoção do lodo. Em alguns projetos o lodo segue direto para
biodigestores2 que o transformam em energia, e noutros segue para
compostagem e vermicompostagem (minhocário), para produção de adubo natural.
Em seguida a água segue por tanques de algas, que auxiliam na oxigenação do
efluente, passam por zonas de raízes que removem parte dos nutrientes, em
particular nitrogênio e fósforo. Onde existem áreas disponíveis, incluem-se
tanques para criação de peixes e aves aquáticas, aumentando a produção de
proteína animal. No final utilizamos plantas macrófitas3, que fazem uma
excelente absorção adicional de nutrientes, e remoção de patógenos, o que
acontece em virtude da alta concentração bacteriana formada nas raízes das
plantas.

A grande disponibilidade de nutrientes permite o rápido crescimento das
plantas, que são transformadas no final em energia, ração animal, ou adubo,
utilizados na produção de alimentos e na recuperação de áreas degradadas. Já
o efluente tratado é disponibilizado com baixos níveis de nutrientes,
podendo ser retornado ao ambiente seja na forma de irrigação, infiltração ou
mesmo diretamente a um rio, contribuindo assim para sua despoluição.

Revista GEA: Quais os princípios, objetivos, e vantagens da implantação de
biossistemas integrados?

Fachini: Respeitar ao máximo os ciclos naturais, cuidar das pessoas e do
ambiente através da reciclagem de nutrientes, produção de energia renovável
e da reeducação ambiental. Entre os objetivos principais está a difusão e a
replicação de biossistemas integrados com capacitação de profissionais em
cada região onde o OIA tiver atuação. Pesquisar através de parcerias com
instituições acadêmicas, setores publico e privado, novas soluções que
venham aprimorar cada vez mais os aspectos técnicos e otimizar os
benefícios. As principais vantagens são a melhoria da qualidade de vida do
ambiente e das pessoas que nele habitam, a qualidade da água devolvida aos
rios, lagos e mar em condições de balneabilidade com geração de trabalho e
renda e educação ambiental.

Revista GEA: Tendo como pano de fundo os objetivos de recuperação
sócio-ambiental de áreas degradadas, como são definidas as etapas de cada
biossistema?

Fachini: Resolver o problema do esgoto é uma forma da comunidade iniciar
outros processos de participação cidadã. Depois de constatada a necessidade,
os órgãos que devem participar são acionados, como prefeituras, companhias
de água e esgoto e, se envolver pesquisa, as universidades locais. Depois
dos orçamentos aprovados, se definem as equipes de trabalho, sempre
incluindo o pessoal local. Isto é fundamental para a posterior
operacionalização do biossistema.

Revista GEA: Seguindo no tema recuperação de áreas degradadas, como se dá o
estabelecimento dos biossistemas junto às comunidades carentes ou
tradicionais?

Fachini: A escolha das comunidades é feita em vista das necessidades locais.
Quando a solicitação parte de uma comunidade, buscamos parcerias para
implantar o projeto. Os moradores participam das discussões desde o inicio,
depois elegem quem vai atuar com trabalho remunerado na fase de implantação,
e posteriormente decidem quem vai operar o sistema. O trabalho de educação
ambiental deve ser contínuo em todas as etapas de implantação, seguindo
durante a operação do projeto. Quando há produção, é possível que o operador
execute suas tarefas em troca da produção. Assim o projeto torna-se
sustentável também na operação. Em projetos pequenos a família que cede a
área para implantação do sistema depois se beneficia pelo uso do biogás, por
exemplo. Quando o projeto está em áreas públicas, sempre que possível, o
biogás é destinado para um equipamento comunitário como uma escola ou
creche.

Fogão em escola rural na Nicarágua usando biogás

Revista GEA: De que forma os biossistemas podem gerar um efeito positivo em
ambientes socialmente degradados?

Fachini: A exuberância da natureza por si só ajuda a recuperar os ambientes
socialmente degradados. As comunidades empobrecidas em geral têm
dificuldades no início em aceitar que áreas sejam destinadas ao saneamento
porque percebem a carência habitacional e de trabalho como prioridades. Mas
depois que um biossistema integrado entra em funcionamento ela muda esta
visão, e passa a compreender que uma área verde, com lagos e criações fazem
parte das necessidades mais gerais e garante equilíbrio social antes
desconhecidos. Na maioria das comunidades, os biossistemas passam a ser o
local de levar os visitantes dos moradores locais. É onde fazem um passeio
no final do dia ou no final da semana. Os pais gostam de levar os filhos
para conhecer. De fato todos estamos reaprendendo a conviver em harmonia com
o ambiente e tentando deixar de lutar contra ele. A luta contra o ambiente
pela sobrevivência ou para acumulação privada, só pode gerar cada
dia mais desequilíbrio e degradação.

Tanque de peixes em projeto de biossistema em Petrópolis/RJ

Revista GEA: Como a qualidade final do efluente tratado pelos biossistemas
se compara com sistemas convencionais de tratamento?

Fachini: Esta é uma comparação que não gostamos muito de fazer porque parece
que estamos apregoando que somos melhores que outros. Mas o que de fato
incentivamos é que o saneamento ambiental seja visto como prioridade, faça
parte da infra-estrutura de qualquer novo empreendimento, e não como mais
uma obrigação. É comum ver pessoas investindo milhões em suas propriedades e
depreciando a necessidade de sanear adequadamente seu ambiente e mal fazem
um sumidouro. Depois reclamam que o rio esta poluído, que a companhia cobra
caro pelo serviço de saneamento, mas podem fazer mais para melhorar tudo
isso. A grande vantagem dos biossistemas sobre os sistemas convencionais é,
por um lado, o tratamento local mais próximo possível da sua origem
minimizando custos, a reciclagem de nutrientes que possibilitam o reuso dos
mesmos na propriedade, ou em seu entorno, e o aproveitamento energético na
forma de calor para cozinhar e aquecer água. Em áreas
de produção agrícola onde os resíduos orgânicos são mais abundantes a
produção de eletricidade é um excelente benefício. Em resumo, a
descentralização dos sistemas de saneamento são o principal beneficio.
Quando é possível implantar todas as fases de um biossistema, o efluente
final chega a mais de 95% de remoção para todos os parâmetros, mas isto se
pode atingir nos demais sistemas. O mais importante é o reuso
descentralizado dos benefícios.

Revista GEA: Ouvimos dizer que se o volume de gás produzido por sistemas
descentralizados em toda a China fosse reunido, ele geraria o equivalente à
produção de cinco usinas de Itaipu. Este número faz sentido?

Fachini: Faz sim. Eles possuem hoje mais de 11 milhões de biodigestores
instalados, e se considerarmos uma produção mínima de 1 m3 por família são
11 milhões de m3 dia de biogás, que multiplicado por 1.5 a 2 kW/m3 de biogás
são em torno de 20 milhões de kW que são gerados diariamente, com a vantagem
de que já se encontram distribuídos de forma descentralizada. Temos que
concordar que uma das grandes revoluções do futuro é energética. A produção
descentralizada pode gerar maior autonomia para as pessoas e a menor
dependência das grandes corporações pode ajudar em outros processos
libertários individuais e coletivos.

Revista GEA: De que forma seria possível integrar diferentes unidades
descentralizadas de biotratamento, e quais as vantagens desta integração?
Existe alguma experiência neste sentido?

Fachini: As experiências com unidades descentralizadas de saneamento fazem
parte dos estudos do PROSAB, de uma coleção de manuais da CETESB da década
de 80, em São Paulo. Ou seja, existe uma concordância entre os pesquisadores
que esta modalidade vem de encontro às necessidades atuais. As vantagens
desta integração estão na possibilidade de minimizar os custos, mas
sobretudo na possibilidade do reuso energético local. Temos experiências bem
recentes na Republica Dominicana, como uma indústria de café. Os resíduos
produzem energia elétrica local para o beneficiamento de café de exportação,
e outra experiência em comunidades no alto das montanhas que juntam resíduos
humanos, de pequenos animais e do processamento local de café, gerando
biogás suficiente para consumo de 80% dos moradores da comunidade. Isto não
é possível quando se utiliza somente dejetos humanos, mas com a integração
dos diferentes resíduos aí sim, o retorno
é bem mais significante.

Revista GEA: Quanto gás seria possível gerar em uma casa com cinco
moradores, por exemplo?

Fachini: Pela literatura, as estações convencionais de tratamento de esgoto
podem gerar de 5 a 20 litros de biogás por habitante por dia. Em nossa
experiência prática, onde o esgoto vem misturado com outras águas, a geração
gira entorno de 30 litros de biogás por pessoa por dia, e onde o esgoto vem
separado de outras águas temos uma produção medida de 50 litros de biogás
por pessoa por dia. Então é possível gerar ¼ de m3 por dia de biogás por
família. Parece pouco, mas isto permite uma chama queimando diariamente por
1 a 2 horas em queimadores de fogão domiciliar.

Revista GEA: Existe algum inconveniente na construção de biossistemas em
áreas urbanas?

Fachini: O que existe é a dificuldade pela falta de espaços, mas isto vale
não só para os biossistemas. A valorização cada vez maior do m2 de áreas
urbanas desumaniza os ambientes e as pessoas, tornando caótico o trânsito, o
ar que se respira, aumentando o stress de todo mundo, e finalmente tornando
a vida mais cara para todos. O ideal é que os espaços sejam previstos antes
que os empreendimentos sejam implantados, e assim possamos manter as áreas
que possibilitem uma melhor qualidade de vida. Não por acaso é exatamente
esse o conceito de saneamento ambiental proposto pela Organização Mundial de
Saúde.

Revista GEA: Se uma casa de apenas cinco moradores gera tanto gás,
imaginamos o potencial de um edifício, seja ele residencial, ou comercial,
ou até mesmo público. É possível construir biossistemas, ainda que em
versões mais simples, em áreas urbanas como São Paulo?

Fachini: Sempre é possível tratar uma grande parte do esgoto gerado o mais
próximo da sua origem. Custa muito menos transportar água previamente
tratada do que esgoto não tratado. Os edifícios e condomínios, muitas vezes
gastam valiosas somas com irrigação de jardins e aquecimento de água. Tudo
isto poderia ser poupado com tratamento e reaproveitamento local, destinando
como efluente somente o que sobrar da água tratada. Hoje o comum é que se
faça justamente o contrário.

Revista GEA: Além de receber os dejetos humanos, que outros materiais
poderiam ser direcionados para o biotratamento? Qual a vantagem dessa
adição?

Fachini: Além do esgoto humano podem ser adicionados resíduos de pequenos
animais em áreas urbanas e rurais. Em áreas urbanas todo o descarte de
sobras de frutas e vegetais pode ser usado para aumentar a produção de
biogás, tanto triturado quanto na forma de “água mel” que é quando se deixa
as sobras por algumas horas numa jarra com água, e esta água se envia depois
para o biodigestor. Também a lavagem de utensílios de cozinha, desde que
feito com sabão neutro, podem ser enviados para o biodigestor aumentando a
produção de biogás. Ao contrário do que se pensa, as gorduras são facilmente
quebradas nos biodigestores e responsáveis por produzir um volume bem maior
de biogás.

Revista GEA: Nós falamos bastante sobre tratamento descentralizado e
projetos de pequena escala. É possível desenvolver biossistemas em larga
escala? Existe alguma experiência recente do OIA neste sentido?

Fachini: Diria ser possível fazer projetos em larga escala principalmente
para pequenos municípios, comunidades organizadas, condomínios, e produtores
agrícolas em geral, em razão da quantidade de resíduos e nutrientes que
podem ser reaproveitados. As indústrias com grandes quantidades de resíduos
orgânicos, as agroindústrias, podem fazer uso de biossistemas para sanear e
gerar mais trabalho aos que vivem próximos de suas unidades de produção. A
cervejaria de Fiji, citada por F. Capra no seu livro Conexões Ocultas é um
bom exemplo. Temos um projeto aplicado em escala comunitária e comercial na
Nicarágua, onde primeiro saneamos o habitat humano e depois os resíduos do
processamento do café. O projeto iniciou com uma empresa e na seqüência
várias outras seguiram implantando o mesmo sistema. Hoje os trabalhadores e
a equipe técnica da Nicarágua está replicando o mesmo projeto na Republica
Dominicana com ampla participação de
comunidades, empresas, setor privado, setor público e universidades. Aqui,
este ano implantamos um piloto no COMPERJ (Complexo Petroquimico do RJ), o
primeiro em uma unidade da Petrobras no mundo. Nossa expectativa é que ele
seja avaliado e possa futuramente ser replicado em escala maior.

Mais informações:

O Instituto Ambiental:
www.oia.org.br

Fundação ZERI:
www.zeri.org.br

*Gui Castagna - Proprietário da Livraria Tapioca, integra conceitos de
permacultura em sua formação de engenharia civil, desenvolvendo projetos de
design ecológico e sustentabilidade em água, de empreendimentos comerciais a
projetos residenciais, incluindo a capacitação de comunidades tradicionais e
de baixa renda.

1 O reino Monera compreende todos os organismos unicelulares e procariontes,
representados pelas bactérias e pelas algas azuis ou cianofíceas.

2 Biodigestores são recipientes estanques que recebem um dado efluente e
promovem redução na carga orgânica pela ação de atividade microbiológica
anaeróbica (sem oxigênio), onde o gás metano é gerado como um subproduto.

3 Plantas que habitam ambientes úmidos ou alagadiços, podem ser flutuantes
ou emergentes. São notórias pela sua capacidade de filtração de água, fruto
de uma simbiose entre suas raízes e as bactérias que nela se alojam atraídas
pelo alto índice de oxigênio dissolvido presente em seu entorno, e que
degradam a matéria orgânica local transformando-a em nutrientes assimiláveis
pelas plantas. Dentre elas encontram-se a taboa, junco, papirus, aguapé,
azola e tantas outras.

[As partes desta mensagem que não continham texto foram removidas]

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